domingo, 16 de outubro de 2011

A primeira vez

''Você não pode ir sozinha porque ainda é muito nova!''
''Você não entende porque ainda é criança!''
''Você é grande demais para ser mimado desse jeito''
Quantas vezes você já ouviu frases como essas?
Para algumas situações, somos jovens demais: para outras, somos velhos.
Afinal, o que somos?

A primeira passeata de um filho 
      O frangote despertou mais cedo que o relógio. Mal lavou o rosto. Engoliu o café queimando a língua. Enfiou no bolso uma nota de dez paus, a carteirinha de estudante, e não deu a menor bola para a mochila dos livros e apostilas. Não estava com cara de quem is assistir às aulas de química, português e geografia.
     O pai ficou na marcação. Esses filhos de hoje...- ele pensou, lembrando-se do tempo em que também era filho e cabulava a escola para ver os filmes do Cinemundi e os jogos de futebol da Várzea do Glicério.
     - Que folga é essa?- perguntou sorrindo.
     O garoto da turma de humanas deu a resposta exata:
     - Vou a passeata.
     - Homessa! (Mesmo os pais modernos tem interjeições antigas.) Que besteira, menino. É assim que tudo começa. De repente dá uma confusão na praça, um corre-corre, você cai, me quebra a perna, vem um cavalo da polícia, te pisa, te amassa, tua vó vai brigar comigo. Que eu fui culpado. Você não sabe o estrago que faz um cassetete. Já vi esse filme. É melhor ficar em casa bem quietinho, lendo um livro, jogando um game, a passeata vai passar na TV. Ou estão, se não tiver nada que fazer, coce o saco. Pelo menos, não tem perigo.
Mas o pai (sujeito vivido) não falou nada. Apenas ficou com o coração aflito. Essas coisas bobas de pai. O que tem de acontecer sempre acontece. Como a primeira vez que saltou do bonde andando e se esborrachou na calçada. Como a primeira vez que tragou um cigarrinho, bituca de Aspásia*, e ficou com gosto de cabo de guarda-chuva uma semana na garganta. Como o primeiro gole de cachaça, num domingo, num piquenique no Pico do Jaraguá, e soltou o mico, vomitou até as tripas.
      Mas aquela era a primeira passeata do menino.
      - Mania que o Senhor tem de me chamar de menino!
      A primeira passeata não é uma coisa à toa. Daqui a cem anos, quando ele crescer, for um velhinho de bengala e próstata safada, se lembrará desse dia antigo jamais esquecido. Contará aos filhos e aos netos. Roncará papo, como fazem todos os velhinhos depois dos 30. Mas agora ele não passa de um garoto franzino, camiseta de algodão, nem se agasalha o porcaria do filho, uns tênis fedidos, e metido a querer traçar seu próprio destino. É muita presunção! Até outro dia, a única vez que desfilou com o povo foi atrás da bateria da torcida do Corinthians.
      -Cuidado, filho a rua tem perigos.
      Mas o pai nada falou. Apenas seu coração batia. Não se pode aparar as asas de um menino (eterno menino). Deixá-lo ir, embandeirado, unir sua voz desafinada de roqueiro fracassado às vozes da cidade enfeitiçada, a qual sorri, embravecida, ao ver que ainda existe a mocidade.
      No alto da passeata, o sol fulgia.

*Aspásia: Antiga marca de cigarro
EMBREVECIDO: extasiado, deslumbrado.
FULGIR: Brilhar
HOMESSA: interjeição que exprime admiração, espanto,equivalente a ora essa, essa é boa.
PRESUNÇÃO: vaidade, pretensão, falta de modéstia. 
Lourenço Diaféria. O imitador de gato e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2001. p. 33-4

A permanente descoberta

Ser jovem depende de pele, de idade, de idéias? Ser jovem se constata na certidão de nascimento ou no espírito de cada um? É possível ser jovem na infância e na adolescência? E na velhice? Será que todo jovem é realmente jovem na juventude

Ser jovem
         Ser jovem é não perder o encanto e o susto de qualquer espera. É, sobretudo, não ficar fixado nos padrões da própria formação. Ser jovem é ter abertura para o novo na mesma medida do respeito sou mutável.
        É acreditar um pouco na imortalidade em vida, é querer a festa, o jogo, a brincadeira, a lua, o impossível, o distante. Ser jovem é ser bêbado de infinitos que terminam logo ali. É só pensar na morte de vez em quando. É não saber nada e poder tudo.
       Ser jovem é ainda acordar, pólo menos de vez em quando, assobiando um a canção, antes mesmo de escovar os dentes. Ser jovem é não dar bola para o síndico mas reconhecer que ele está na sua. É achar graça do riso, ter pena dos tristes e ficar ao lado das crianças. Ser jovem é estar sempre aprendendo inglês, é gostar de cor, xarope, gengibirra e pastel de padaria. Ser jovem é não ter azia, é gostar de dormir e crê na mudança; é meter o dedo no bolo e lamber o glacê.
        É cantar fora do tom, mastigar depressa e engolir devagar a fala do avô. É gostar de barca da Cantareira, carro velho e roupa amargura. É bater papo com a baiana, curtir o ônibus e detestar meia marrom.
        Ser jovem é beber chuvas, ter estranhas súbitas e inexplicáveis atrações. É temer o testemunho, detestar os solenes, duvidar das palavras. Ser jovem é não acreditar no que está pensando exceto se o pensamento permanecer depois. É saber sorrir e alimentar secretas simpatias pelos crentes que cantam nas praças em semicírculo, Bíblia na mão, sonho no coração.
       É gostar de ler e tentar silêncios quase impossíveis. É acreditar no dia novo como obra de Deus. É ter metafísica sem ter metafísica. É curtir trem, alface fresquinha, cheiro de hortelã. É gostar até de talco. Ser é ter ódio de cachimbo, de bala de jujuba, da manipulação, de ser usado.
       Ser jovem é ser capaz de compreender a tia, de entender o reclamo da empregada e apoiar seu atraso. Ser jovem é continuar gostando de deitar na grama. É gostar de beijo, de pele, de olho, Ser jovem é não perder o hábito de se encabular. É ir para ser apresentado (“- Já conhece fulano?”) morrendo de medo.   
       Ser jovem é permanecer descobrindo. É querer ir a lua e conhecer Finlândias, Escócias e praias adivinhadas. É sentir cheiros raríssimos: cheiro de férias, cheiro de mãe chegando em casa em dia de chuva, cheiro de festa, aipim, camisa nova, marcenaria ou toalha de lã do clube.
     Ser jovem é andar confiante como quem salta, se possível  de mãos dadas com o ar. É ter coragem de nascer a cada dia e embrulhar fossas de celofane do não faz mal. É acreditar em frases, pessoas, mitos, forças, sons, é crer no que não vale a pena mas ai da vida se não fosse isso.
       É descobrir um belo que não conta. É recear as revelações e ir pra casa com o gosto de seu silêncio amargo ou agridoce.
       Ser jovem é ter capacidade do perdão e andar com os olhos cheios de capim cheiroso. É ter tédios passageiros, é amar a vida, é ter uma palavra de compreensão. Ser jovem é lembrar pouco da infância por não precisa e fazê-lo para suportar a vida. Ser jovem é ser capaz de anestesias salvadoras.
  Ser jovem é misturar tudo isso com a idade que tenha, trinta, quarenta, cinqüenta, sessenta, setenta ou dezenove. É sempre abrir a porta com emoção. É esperar dos outros o que ainda não desistiu de querer. Ser jovem é viver em estado de fundo musical de superprodução da Metro. É abraçar esquinas, mundos, espaços, luzes, flores, livros, discos cachorros e a menininha com um profundo,aberto e incomensurável abraço feito de festa, cocada preta, dentes brancos e dedos tímidos, todos prontos para os desencontros da vida. Com uma profunda e permanente vontade de SER.

FOSSA: Na linguagem informal, ''estar na fossa'' equivale a estar deprimido, desalentado.
GENGIBIRRA: Espécie de cerveja de gengibre; termo usado também para designar cachaça.
METAFÍSICA: Ramo da filosofia que estuda os fundamentos da existência ou realidade.
METRO: Um dos mais importantes estúdios do cinema americano. 

(Artur da Távola. Ser jovem .8. ed. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.13-4).